No Traçando Livros de hoje,"A poeira da glória"


Na minha coluna no caderno Mix, na Gazeta do Sul de hoje, escrevo sobre "A poeira da glória", de Martim Vasques da Cunha.

Levantando poeira


Poderiam depor contra o livro A poeira da glória, de Martim Vasques da Cunha (Record, 630 páginas) os inúmeros depoimentos que li na internet dando conta de que essa era a maior e melhor obra sobre literatura nos últimos anos no Brasil. Fazendo jus ao título, essas afirmações colocaram um pouco de poeira da glória sobre o volume e sobre o autor. Sem dúvida, estamos diante de um conjunto de ótimos ensaios. Porém, ao pretender ser o que não é, a decepção de quem vai com sede ao pote é muito grande.

Na introdução, Martim Vasques da Cunha afirma que o leitor deve esquecer a pessoa que escreveu. Para se compreender obra dele, não importa sua ideologia política, por exemplo. Boa parte do que virá pela frente, porém, tenta desmitificar escritores justamente devido a seus predicados na vida real. Essa contradição é o primeiro grande senão do livro, que também falha na ambiguidade, defeito que aponta em outros autores. Muitas vezes não fica claro quando ele os está elogiando ou criticando. Em um trecho, por exemplo, afirma que o ensaio “Dialética da malandragem”, de Antonio Cândido, é “brilhante, porém equivocado”. Em outro, afirma que, em Noite da Taverna, Álvares de Azevedo, “há uma destreza narrativa na forma como os contos estão interligados, mas a escrita é pobre, próxima de uma redação escolar”. Para um livro de ensaios, é necessário mais clareza.

Propondo ser “uma (inesperada) história da literatura”, como consta na capa, a obra peca também por dar ênfase à análise de críticos literários e historiadores, como Antônio Cândido, Sérgio Buarque de Holanda e José Guilherme Merquior, além de destacar mais os aspectos políticos desses autores. Muitos romancistas, contistas e poetas ficaram de fora do livro, provando que não é a história da literatura o foco principal.
Se desconsiderarmos essa equivocada forma de vender o produto e encararmos os ensaios como crítica literária e cultural (como propõe o autor na introdução), encontraremos, aí sim, uma obra que justifique a imersão em suas mais de 600 páginas. Aliás, prefiro livros e escritores contraditórios a obras certinhas, racionais em demasia, e autores lineares no seu pensamento.

Martim Vasques derruba o mito dos escritores como antenas da raça, como gênios que devem ser idolatrados, como homens que entendem de política e cujas opiniões, portanto, formam a opinião de uma legião de leitores. Mostra como era e continua sendo nefasta a influência de artistas nas decisões que conduzem nosso país. Sobre Machado de Assis, por exemplo, Martim não esconde a simpatia pela brilhante obra literária do autor de Dom Casmurro. No entanto, condena sua literatura por ser a de um sujeito dissimulado, acometido do que o autor chama de “quietismo político”. Afirma que a “dissimulação de Machado de Assis é um veneno para a nossa sensibilidade moral”.

A propósito de José de Alencar, analisa as formas “como um escritor age quando tem delírios de poder”. Faz críticas certeiras à artificial língua brasileira proposta por Mário de Andrade e afirma que Guimarães Rosa “produziu uma pirâmide” que se tornou “um biscoito muito delicioso, mas pouco nutritivo”, enquanto que Otto Lara Resende, “que parecia ter feito apenas biscoitinhos com um sabor esquisito era quem tinha preparado o alimento que nos sustentaria na longa noite escura que ainda atravessamos”.
Otto Lara Resende (é dele a expressão que dá título ao livro) é um dos merecedores de análise positiva, ao lado de, entre outros, Cecília Meireles e Nelson Rodrigues, afinal nem só de crítica negativa vive o crítico. Destaco ainda a portentosa bibliografia, que denota a carga elevada de leitura do autor, provando que sua análise é bem fundamentada, concordando-se ou não com ela. É um exemplar para ser lido relido e que não deve ficar na estante acumulando poeira.


Cassionei Niches Petry é escritor e jura não estar buscando a poeira da glória. Sabemos, porém, que os escritores são todos mentirosos. Além de escrever esta coluna, colabora com sites na internet e mantém um blog, www.cassionei.blogspot.com.

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