A ZH está muito boa hoje, não pelas mudanças do aspecto gráfico, mas principalmente pelas colunas. Além da coluna do Lerina, gostei muito da crônica da Cláudia Laitano. Ele aborda um fato que chocou todo mundo, a morte da jovem Neda Agha-Soltan, em Teerã e cita o filme "Spartacus", do Kubrick, que revi esta semana.

Somos todos Neda

Às vezes – poucas vezes –, a ignorância pode ser uma vantagem. Assistir a um clássico em completa inocência do seu conteúdo e ser surpreendido por uma cena sobre a qual várias gerações de críticos já escreveram é um exemplo. Minha teoria é a seguinte: apenas o
espectador desavisado, quase ignorante, é capaz de desfrutar em toda sua plenitude um filme já exaustivamente citado, analisado, interpretado. Saber menos, nesses casos, é sentir mais. Aconteceu comigo, anos atrás, assistindo a Spartacus (1960), de Stanley Kubrick, e topando inocentemente com uma das cenas mais impactantes da história do cinema.

Ao longo das últimas décadas, a clássica sequência em que centenas de escravos, para
proteger a identidade do herói vivido por Kirk Douglas, proclamam: “Eu sou Spartacus” foi citada de inúmeras formas – em filmes, programas de TV e até em comerciais, fazendo rir ou fazendo pensar. Mas qual o segredo dessa cena? Por que até hoje ela impressiona e continua
sendo reproduzida em diferentes contextos? O que me ocorre é que talvez essa coragem dos escravos que se levantam para proteger o líder ameaçado seja de uma dimensão mais obviamente humana do que a coragem dos grandes heróis, o que a torna mais próxima da compreensão da maioria de nós. Não estamos falando aqui do heroísmo de Davi diante de Golias, de Daniel na cova dos leões ou mesmo de Chico Mendes enfrentando os seringueiros. O líder que arrisca sua vida pelo bem comum merece nossa admiração e respeito, mas o
pequeno gesto grandioso do indivíduo que se apoia em outros pequenos heroísmos para levar adiante uma causa desperta nossa mais profunda empatia, pois este é um lugar no qual, sem muito esforço, conseguimos nos colocar. Pessoas unidas por uma causa comum são sempre
maiores do que elas mesmas. Uma torcida é maior que um time, uma família é maior que seus membros. E quando a causa exige alguma dose de coragem pessoal, a ação coletiva transforma a fragilidade individual na força de um grupo. Se a história dependesse apenas de líderes e heróis, estaríamos ferrados. A maioria das pessoas nasceu para fazer parte da multidão, não para ser Spartacus.

Horas depois da execução da jovem Neda Agha-Soltan em uma rua de Teerã, durante um protesto no último sábado contra o resultado das eleições iranianas, cartazes, camisetas e blogs começaram a estampar os slogans “Eu sou Neda” ou “Somos Todos Neda”. Neda, 27 anos, era funcionária de uma agência de viagem, aprendeu turco para trabalhar como guia, estudava canto e não era particularmente politizada – ainda que, como boa parte dos
iranianos, estivesse indignada com o resultado das eleições. Segundo o relato de amigos e familiares, Neda não era uma liderança nata ou sequer uma pessoa de temperamento exaltado. Era uma jovem voltando de uma aula de canto, talvez dotada apenas daquela coragem discreta de quem não nasceu para ser herói.

Por um lance de acaso associado à tecnologia, alguém com um celular registrou os últim
os minutos de sua vida – o corpo ensanguentado, os olhos desafiadoramente abertos. O vídeo foi visto por milhões de pessoas, e Neda acabou se transformando em um Spartacus
involuntário – o rosto bonito e sereno de um movimento que, mesmo antes de sua morte, já contava com a simpatia de boa parte do mundo.

A história, violenta e imprevisível como uma bala perdida, apanhou Neda no meio rua, depois de uma aula de canto – e todos nós ficamos feridos.

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