Caim, de José Saramago


A partir de segunda estará nas livrarias o novo romance de José Saramago. A julgar pelas críticas e pelo tema do livro, vem muita polêmica por aí. No caderno "Prosa e verso" de "O Globo", há uma entrevista com o autor, que publico aqui:

Em "Caim", novo romance de José Saramago, Deus e qualquer crença sucumbem sob uma narrativa em que se equilibram humor, ironia e muitas palavras duras. Sobra para cristãos e judeus. Em menos de 200 páginas, espalham-se embates quase filosóficos entre Caim e seu criador, no qual um discute a capacidade do outro de julgar ou ser julgado. Espectadores dessa luta, os leitores viajam por diversos episódios da Bíblia, da destruição de Sodoma e Gomorra ao dilúvio que exterminou a Humanidade, sempre pela ótica questionadora do rebelde Caim. Ou melhor, do ateu Saramago que, em entrevista por e-mail, diz que se limita a escrever o que pensa, deixando cada leitor fazer sua própria interpretação. Embora não tenha escrito ali nada novo para aqueles que conhecem sua profunda e propagada aversão às religiões, Saramago (acima, em foto de Vania Delpoio, de 2003) afirma que “Caim” tem papel fundamental em sua bibliografia e em sua vida. Detalhe curioso: o livro ganhou aqui uma capa preta, na qual se destaca a colagem de papel sobre madeira, em vermelho vivo, de Arthur Luiz Piza. É curioso porque, embora bela e sóbria, ela foge completamente ao padrão gráfico da coleção Saramago na Companhia das Letras, que tem até agora apenas capas brancas. A editora diz que não houve nenhum motivo especial para a mudança, que foi sugerida pelo designer Hélio de Almeida e Saramago topou.

Entre “O Evangelho segundo Jesus Cristo” e “Caim” se passaram quase 20 anos. Durante todo este período o senhor continuou a falar sobre a inexistência, a inconfiabilidade ou a intransigência de Deus, mas não em forma de literatura. Como se deu a volta ao tema em livro?

“O Evangelho segundo Jesus Cristo” é literatura, não uma mera glosa dos episódios registados no “Novo Testamento”. O regresso ao tema religioso deu-se, portanto, de maneira natural, quase como uma continuidade de trabalho..

O Caim que o senhor constrói é a voz da razão, da clareza de raciocínio, mostrando um Deus tão tirano e incompreensível que torna qualquer crença patética. Qual foi sua intenção ao escrever o livro? E como acha que será a reação a ele?

No fundo, o problema não é um Deus que não existe, mas a religião que o proclama. Denuncio as religiões, todas as religiões, por nocivas à humanidade. São palavras duras, mas há que dizê-las. Quanto às reacções, não estão na minha mão. Cada um dirá o que entender conforme as suas convicções e as suas crenças.


Entre tantas figuras bíblicas, por que a escolha de Caim? O que ele representa?

Desde há muitos anos que penso que a história de Caim, como tantas outras histórias bíblicas (por exemplo, a de David e Golias ou a de Job), é uma história mal contada. Não absolvo Caim, mas acuso Deus de ser o responsável do assassínio ao recusar a oferenda dele. Que diabo de Deus é este que para enaltecer um irmão despreza o outro?


O senhor já disse várias vezes que cresceu sem formação religiosa. Chegou a ler ou reler a Bíblia para embasar melhor os episódios do livro?

Para mim, a “Bíblia” é um livro a mais. Importante, sem dúvida, mas um livro. Como tal o li e consultei sempre que necessitei. Desta vez concentrei-me no Gênesis onde se encontram as figuras que tomei como personagens do livro.

Outros ateus convictos, como Richard Dawkins e Christopher Hitchens vêm dedicando boa parte do tempo a uma espécie de cruzada antirreligiosa, lançando livros e participando de eventos nos quais reafirmam suas ideias. Como o senhor vê essa empreitada?

Por mim não o faria. É praticamente impossível convencer alguém a virar as costas às suas crenças. Limito-me a escrever o que penso do assunto e deixo aos leitores a inteira liberdade de fazer o que entendam. O único que peço para mim é respeito.

O senhor acredita que ainda é possível a existência de um mundo sem religião? O pessimismo de Caim em relação à Humanidade é também o seu?

Penso que não merecemos a vida, penso que as religiões foram e continuam a ser instrumentos de domínio e morte. Em suma, Caim teve razão para tentar impedir que outra humanidade substituísse a que teria morrido no dilúvio. Afinal, se a primeira era má, esta é péssima..

Apesar disso, todo o livro é pontuado por muito humor, com cenas que convidam o leitor a refletir sobre a narrativa. O senhor se divertiu ao escrevê-lo?

Diverti-me bastante, mas sobretudo gozei com o facto de ter podido meter a ironia e o humor num tema em princípio tão dramático.


Qual o papel de “Caim” em sua bibliografia? O senhor já disse que não é um acerto de contas com Deus. Mas enxerga nele um significado especial?

Pela maneira como enfrentei o assunto, pela linguagem com o que o tratei, considero este livro fundamental, quer na minha bibliografia, quer na minha vida.


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