O inferno são os outros?

por Cassionei Niches Petry

Três pessoas estão em uma pequena sala: um intelectual, uma socialite e uma lésbica. É ali que vão permanecer, não sabem por quanto tempo, talvez eternamente. Logo ficamos sabendo que ali é o inferno, diferente do inferno fixado no imaginário ocidental por Dante Alighieri na Divina Comédia. Em um primeiro momento, tudo é novidade, estão todos sorridentes, “não sabia que era assim”, “onde estão as estacas e as grelhas”, “pensei que você fosse o carrasco, “com o tempo a gente se acostuma com os móveis”, “esses sofás são medonhos”. Porém, conforme vão se conhecendo, toda a tranquilidade começa a acabar, surgem os conflitos, as verdades sobre suas vidas vão aparecendo e seus próprios pensamentos começam a perturbá-los. Até que um personagem conclui: o inferno são os outros.

Esse pequeno relato bem podia ser de um reality show da TV. Mas calma, leitor, não vou voltar a esse assunto, pelo menos por enquanto. Tudo faz parte da peça de teatro Entre quatro paredes (Huis Clos, no original) escrita pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre em 1944. Tive o privilégio de assisti-la há alguns anos, em uma das poucas vezes que pude ir ao teatro. O texto nos faz refletir sobre a convivência entre as pessoas, de como não sabemos lidar com quem é diferente, pois todos queremos que os outros ajam de acordo com nosso modo de vida e ficamos incomodados quando isso não acontece. No filme Dia dos mortos, do diretor George Romero, militares e cientistas viviam em um bunker para se refugiar dos zumbis. Depois de uma discussão muito forte, um dos personagens afirma: “o problema do mundo é que as pessoas têm ideias diferentes a respeito do que querem da vida."

Então, não estaria o inferno dentro de nós mesmos? Estamos sempre querendo ver o céu ou o inferno em um além-túmulo, mas a paz ou o conflito não estão dentro de nosso próprio cérebro? Não é à toa que na mitologia grega o mundo dos mortos era protegido pelo cão de três cabeças chamado Cérbero, que controlava a saída do Hades. Notem a semelhança entre o nome do monstro e a palavra cérebro. Pois cada cabeça desse ser mitológico pode simbolizar as divisões do inconsciente, de acordo com Sigmund Freud: o ID, que são nossos instintos e desejos mais primitivos, relacionados à busca pelo prazer; o SUPEREGO, que representa a censura que a cultura impõe ao indivíduo, as repressões aos desejos do id; e o EGO, que é o equilíbrio, controlando o comportamento, pois nem o id nem o superego podem prevalecer um sobre o outro, caso contrário acontecem os distúrbios mentais. Então, quem se deixa dominar pelos seus desejos mais recônditos pode ser tachado de pervertido. Quem se deixa ser controlado de mais pode se tornar um fanático religioso, por exemplo.

O inferno, portanto, não é um lugar além-túmulo fictício, tampouco o nosso mundo o é, muito menos são as outras pessoas. O inferno está dentro de cada um de nós, e, como disse Juan Pablo Castel, personagem do romance El túnel, do argentino Ernesto Sábato, “os muros deste inferno serão, assim, cada dia mais herméticos”.

(Ilustração de Gustave Doré, para a Divina Comédia)





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Trilha sonora da composição da crônica: Mutantes, A divina comédia ou ando meio desligado.

Comentários

Luis Fernando disse…
De trilha sonora estamos bem.

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