Coletividade X indivíduo

Cartum de Quino

por Cassionei Niches Petry

“Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho/ deixem que eu decida a minha vida”, entoa Belchior em uma música que foi muito lembrada quando do “sumiço” do cantor há alguns meses. Os versos nos fazem pensar sobre o que chamo de ditadura da coletividade. Nela, o indivíduo é obrigado a viver socialmente, para ser aceito pelos seus pares, ou deve se engajar em alguma causa social para não ser tachado de insensível ou reacionário. Ora, porque precisamos seguir o mesmo caminho que outros seguem, fazer o que os outros fazem, pensar como os outros pensam?

Se o indivíduo não bebe com os amigos, por exemplo, é ridicularizado. Recentemente parei de ingerir bebidas alcoólicas (que Baco me perdoe!), o que fez muitos pensarem que eu teria virado “crente”, uma ofensa para um ateu. É nesse passo que muitos acabam entrando nas drogas. A necessidade de pertencer a um grupo leva os jovens a imitar os outros através das gírias, roupas, atitudes e, claro, uso de substâncias que os tornem “rebeldes” diante da sociedade. Mal sabem eles que estão perdendo sua individualidade ao se tornarem marionetes dos amigos e do tráfico. Fogem de um sistema opressor para entrar em outro pior ainda. E são individualistas por não pensarem no sofrimento que causam àqueles que realmente os amam.

Paradoxalmente, há pessoas ditas altruístas que, na verdade, são individualistas. Muitos voluntários desses movimentos de solidariedade criticam as pessoas que não se envolvem nesses assuntos. “Se mais pessoas ajudassem, pensassem na coletividade, o mundo seria muito melhor. Eu estou fazendo a minha parte.” Quem afirma isso quer ajudar os outros ou satisfazer seu ego? Ora, quem não tem vocação de ajudar tem o direito de se abster para não atrapalhar. Muitos escritores e filósofos, na solidão de suas torres de marfim, podem fazer muito mais ao produzir obras que nos fazem refletir do que aqueles que se vangloriam em pensar nos outros para aparecer nas colunas sociais. Como escreveu Oscar Wilde, “o egoísmo não consiste em vivermos conforme os nossos desejos, mas sim em exigirmos que os outros vivam da mesma forma que nós gostaríamos. O altruísmo, por sua vez, consiste em deixarmos todo mundo viver do jeito que bem quiser.”

Não podemos confundir individualismo com individualidade. O individualista só pensa em si mesmo. Para ele o mundo gira ao seu redor e julga severamente os que pensam diferente dele. Parece até odiar seus semelhantes. Já o indivíduo está inserido dentro de uma sociedade, porém quer preservar seus valores próprios, sua singularidade, sem impor seus pontos de vista a outras pessoas, pois não abre mão de conviver com elas. Dito de outro modo, o primeiro acha que é o centro do mundo e quer moldar os outros de acordo com suas ideologias. O segundo prefere ficar à margem e sua filosofia de vida é moldada para si mesmo. No entanto, adora estar em boa companhia e compartilhar, repito, compartilhar o que pensa. Ah, e aceita ser contestado.

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Escrevi o texto ouvindo, lógico, o disco Era uma vez o homem e seu tempo, de Belchior, que contém a música "Comentário a respeito de John", citada no início da crônica.

Comentários

João disse…
Gostei do texto e gosto particularmente desse hino do Belchior. Fez me lembrar uma leitura que fiz recentemente de Ibsen, em que me impressionou muito saber que a decadência da ideologia individualista do final do século XIX transformou de tal maneira sua dramaturgia que passou a escrever peças simbolistas...

"Muitos voluntários desses movimentos de solidariedade criticam as pessoas que não se envolvem nesses assuntos. “Se mais pessoas ajudassem, pensassem na coletividade, o mundo seria muito melhor. Eu estou fazendo a minha parte.” Quem afirma isso quer ajudar os outros ou satisfazer seu ego?"

Gostei da frase. E compartilho no ateísmo.

Abraços!
Cassionei Petry disse…
Obrigado pelo belo comentário, João. Abraço.

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