Textos apócrifos

Cassionei Niches Petry, a partir de fontes diversas


Imagine um escritor quebrando a cabeça, durante horas, diante da tela em branco do computador, até conseguir criar um bom texto. Mais tarde o publica num livro, jornal, site ou blogue. Passam-se os anos, e o texto aparece circulando na internet como se fosse de outro autor. Basta uma pessoa para disseminar o erro, e o vírus se espalha. Como o brasileiro não é muito de checar as fontes, está feito o estrago.

Um dos primeiros casos que conheço, ainda da era pré-internet, foi o do seguinte poema:


“Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”


O poema circulou durante muito tempo como se fosse do poeta russo Maiakóvski. Mas trata-se, na verdade, de um fragmento do poema “No caminho, com Maiakóvski”, de Eduardo Alves da Costa. Esse equívoco, que começou nos anos 70, até hoje é repetido por uma legião de pessoas. Nem mesmo a citação correta em uma novela das 8 adiantou. Vale lembrar que há um poema semelhante a esse, na verdade um sermão do pastor Martin Niemölle proferido na época do nazismo e que muitas vezes é atribuído a Bertold Brecht :


“Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram; já não havia mais ninguém para reclamar.”


Outro caso famoso foi do poema “Instantes”, atribuído a Jorge Luis Borges. Eis a primeira estrofe:


"Se eu pudesse novamente viver a minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito,
relaxaria mais, seria mais tolo do que tenho sido.”


Os leitores mais especializados na obra de Borges afirmavam que não poderia ser do escritor argentino, dada a pouca qualidade do texto. O jornal espanhol El País, em 1999, desvendou o mistério: o poema era de uma desconhecida escritora norte-americana chamada Nadine Stair. Depois, descobriu-se que na verdade era do humorista Don Herold, sendo apenas modificado nas versões seguintes ( aliás, a música “Epitáfio”, dos Titãs, não estaria entre essas versões?). De qualquer forma, isso tudo surgiu porque alguém quis dar mais “credibilidade” ao texto.

Aliás, esse tipo de valorização a partir de um nome famoso é o que mais de espalha na rede de computadores. Alguém acha um texto de um cronista desconhecido muito bom e o atribui a Arnaldo Jabor, por exemplo, e muitas vezes o texto não tem nada a ver com ele. É só mandar para um e-mail de um conhecido, que manda para seus contatos, os quais mandam para outros e a bola de neve se agiganta. Luis Fernando Verissimo, Millôr Fernandes, além de escritores já falecidos, como Carlos Drummond de Andrade, são os alvos principais. Recentemente, o prêmio Nobel Gabriel García Marquez teve que vir a público afirmar que o texto “Marionetes”, que ele achou muito ruim, não poderia jamais ser escrito por ele.

Recentemente me deparei na rede com um poema de Pablo Neruda, traduzido para o português. Eis os versos iniciais:


"Morre lentamente quem não viaja,

quem não lê,

quem não ouve música,

quem não encontra graça em si mesmo.”


Fiquei com um pé atrás com alguns trechos, que não me pareceram com seu estilo. Resolvi procurar nos livros dele e não encontrei. Pesquisando em um site em espanhol dedicado ao autor, achei finalmente, e no “original” em castelhano. Pensei, deve ter sido um poema publicado apenas em jornal ou revista, quem sabe, e por ser abaixo da qualidade dos outros, Neruda resolveu não eternizá-lo em livro nenhum. Acabei trazendo para a sala de aula para trabalhar com os alunos. Pois em 2009, leio uma reportagem do jornal Zero Hora sobre um político que recitou o poema no Senado italiano e a imprensa noticiou que a autoria era de Martha Medeiros. O texto era, na verdade, uma crônica publicada em 2000 em ZH (leia a matéria e a crônica aqui), e autora já havia até mantido contato com a Fundação Neruda sobre o caso. Claro, que, apesar de toda a fundamentação e a fonte, o poema vai continuar circulando pelo mundo todo como se fosse de Pablo Neruda, até porque a verdade não circula com a mesma facilidade do que a mentira.

Falando em mentira, há alguns meses o grande poeta Affonso Romano de Sant’anna pediu que seus leitores divulgassem que uma versão modificada de poema seu estava circulando em uma corrente na internet. Entre outras coisas, dizia o falso texto que Lula mente. Publico, então, o verdadeiro poema, aliás, um dos que os alunos mais adoram quando leio nas aulas, escrito em 1984, em um contexto bem diferente. E lembre-se, caro leitor: procure a verdade e valorize quem escreve:

A Implosão da Mentira


Fragmento 1


Mentiram-me. Mentiram-me ontem

e hoje mentem novamente. Mentem

de corpo e alma, completamente.

E mentem de maneira tão pungente

que acho que mentem sinceramente.


Mentem, sobretudo, impune/mente.

Não mentem tristes. Alegremente

mentem. Mentem tão nacional/mente

que acham que mentindo história afora

vão enganar a morte eterna/mente.


Mentem.Mentem e calam. Mas suas frases

falam. E desfilam de tal modo nuas

que mesmo um cego pode ver

a verdade em trapos pelas ruas.


Sei que a verdade é difícil

e para alguns é cara e escura.

Mas não se chega à verdade

pela mentira, nem à democracia

pela ditadura.



Fragmento 2


Evidente/mente a crer

nos que me mentem

uma flor nasceu em Hiroshima

e em Auschwitz havia um circo

permanente.


Mentem. Mentem caricatural-

mente.

Mentem como a careca

mente ao pente,

mentem como a dentadura

mente ao dente,

mentem como a carroça

à besta em frente,

mentem como a doença

ao doente,

mentem clara/mente

como o espelho transparente.

Mentem deslavadamente,

como nenhuma lavadeira mente

ao ver a nódoa sobre o linho.Mentem

com a cara limpa e nas mãos

o sangue quente.Mentem

ardente/mente como um doente

em seus instantes de febre.Mentem

fabulosa/mente como o caçador que quer passar

gato por lebre.E nessa trilha de mentiras

a caça é que caça o caçador

com a armadilha.

E assim cada qual

mente industrial? mente,

mente partidária? mente,

mente incivil? mente,

mente tropical?mente,

mente incontinente?mente,

mente hereditária?mente,

mente, mente, mente.

E de tanto mentir tão brava/mente

constróem um país

de mentira

-diária/mente.


Fragmento 3


Mentem no passado. E no presente

passam a mentira a limpo. E no futuro

mentem novamente.

Mentem fazendo o sol girar

em torno à terra medieval/mente.

Por isto, desta vez, não é Galileu

quem mente.

mas o tribunal que o julga

herege/mente.

Mentem como se Colombo partin-

do do Ocidente para o Oriente

pudesse descobrir de mentira

um continente.


Mentem desde cabral, em calmaria,

viajando pelo avesso, iludindo a corrente

em curso, transformando a história do país

num acidente de percuso.


Fragmento 4


Tanta mentira assim industriada

me faz partir para o deserto

penitente/mente, ou me exilar

com Mozart musical/mente em harpas

e oboés, como um solista vegetal

que absorve a vida indiferente.


Penso nos animais que nunca mentem.

mesmo se têm um caçador à sua frente.

Penso nos pássaros

cuja verdade do canto nos toca

matinalmente.

Penso nas flores

cuja verdade das cores escorre no mel

silvestremente.


Penso no sol que morre diariamente

jorrando luz, embora

tenha a noite pela frente.


Fragmento 5


Página branca onde escrevo. Único espaço

de verdade que me resta. Onde transcrevo

o arroubo, a esperança, e onde tarde

ou cedo deposito meu espanto e medo.

Para tanta mentira só mesmo um poema

explosivo-conotativo

onde o advérbio e o adjetivo não mentem

ao substantivo

e a rima rebenta a frase

numa explosão da verdade.


E a mentira repulsiva

se não explode pra fora

pra dentro explode

implosiva.


(Poema publicado no JB em 1984, quando do episódio do Rio Centro e em diversas antologias do autor. Está em Poesia Reunida, L&PM,1999, v.2)


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