Muito além da tela


Cassionei Niches Petry

O jardineiro Chance viveu durante toda a sua vida morando e trabalhando em uma casa, de onde jamais lhe fora permitido sair. Tinha como distração apenas uma TV com controle remoto, à frente da qual passava boa parte do dia. Não sabe sequer ler e escrever. Para ele, a realidade se resume ao velho dono da casa, que como pagamento pelos serviços lhe dava de presente suas roupas usadas, mas de grife; à empregada, que lhe servia o almoço; e à televisão, que lhe mostrava o mundo “além do jardim”. Agora, com a morte do velho, é expulso pelos herdeiros e se vê obrigado a conhecer o outro lado do muro.

O início do romance O vidiota (Ediouro, 112 páginas), escrito por Jerzy Kosinsky nos anos 70, lembra a “Alegoria da caverna”, de Platão. Na história do filósofo grego, homens acorrentados desde tempos imemoriais viam sombras projetadas no fundo de uma caverna, produzidas por uma fraca luminosidade vinda da entrada. Quando um deles consegue se soltar, descobre que o que viam não era a realidade, mas a aparência dela. Chance, por sua vez, continuou a achar que “tudo o que via fora dos limites da casa se assemelhava ao que havia contemplado na televisão.” Na adaptação para o cinema (que no Brasil recebeu o título de Muito além do jardim), cujo roteiro foi do próprio escritor, há uma cena que não consta no romance. Chance, vivido pelo ator Peter Sellers, ao pedir informações para um grupo de menores delinquentes, reage de uma forma inusitada quando um deles aciona um canivete automático na sua frente: tira o controle remoto que levava no bolso e aperta os botões, como se tentasse trocar o canal que não lhe agradou.

Depois de ser atropelado sem gravidade pela limusine de uma mulher rica, o jardineiro, é apresentado ao círculo dos grandes empresários e economistas de um país em crise financeira como se fosse um homem rico, devido às suas roupas. Perguntado sobre o que acha da situação, ele responde: “Em um jardim, há uma estação para o crescimento das plantas. Há a primavera e o verão, mas também o outono e o inverno. E depois, a primavera e o verão voltam. Enquanto as raízes não forem cortadas, tudo está bem, e tudo continuará bem.” Um assombro! De um dia para o outro, Chance passa a ser conhecido internacionalmente pelas suas metáforas inteligentes, é convidado para entrevistas e inclusive é citado em um pronunciamento do presidente do país. Repetindo inocentemente gestos e falas que via na televisão, se torna uma das pessoas mais influentes do mundo, mesmo sendo analfabeto, simbolizando, talvez, muitos políticos e empresários que galgam postos importantes mesmo tendo pouco estudo.

Mas a comparação que me vem à mente é do protagonista de O vidiota com o telespectador brasileiro. Este tem opinião para tudo, mesmo conhecendo superficialmente sobre o que vai falar, pois apenas reproduz o que seu formador de opinião preferido na TV afirma. Seja o jornalista que fica durante todo o seu programa berrando, seja a apresentadora dondoca que nunca saiu do seu estúdio, ou ainda o autor da novela das oito, o brasileiro reserva a eles um altar na estante de sua casa. Pena que esses deuses televisivos defendam a pena de morte, o ódio ao semelhante, o julgamento sem provas, a crença em milagres e em soluções fáceis. Faz falta um controle remoto para trocar essa falsa realidade de forma definitiva, substituindo as sombras projetadas na tela pelas cores vivas da realidade. Ou, melhor ainda, pelo preto e branco das páginas de um livro como esse de Jerzy Kosinsky.

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“Considero a televisão muito educativa, pois quando ligam o aparelho, vou para outra sala ler um livro.” Groucho Marx


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