Lenira

Este conto que escrevi é beeemmm antigo. Relendo-o, noto a influência que tive na época das leituras dos contos do Dalton Trevisan. Fiquem à vontade para críticas sinceras.

Lenira

Ele pôs a garrafa de cachaça sobre a mesa e limpou, com a mão suja de graxa, o suor que lhe escorria no rosto e no pescoço. Lenira serviu a comida, ressabiada. Enfrentar o marido bêbado era um teste de paciência para ela.

-Tá sem sal a carne, mulher!

-Eu botei como tu gosta, Zé.

-Mas eu tô dizendo que tá sem sal e pronto!

-Se não quer comer bota fora, diabo!

-Tu fala direito comigo...

Ele se levantou e a encarou com raiva. Quem ela estava pensando que era. A mulher, por sua vez, não baixou a cabeça. Apesar de tudo que passava na mão do marido, não lhe demonstrava medo nenhum. Depois de uma pequena batalha de resistência, o homem a olhou de lado como se dissesse “isso não vai ficar assim” e continuou comendo, dando arrotos a cada dez segundos.

Lenira ficou limpando a casa de tarde. Quando ia lavar as cuecas encardidas do marido, bateram na porta. Implorou aos céus para que fosse um freguês trazendo roupas para lavar. No entanto, o rapaz com o qual se deparou trazia uma grande mala, não com roupas, mas sim com facas para vender.

-Boa tarde, minha senhora. Tenho aqui belíssimas facas, que, além de serem baratíssimas, nunca perdem o fio. Gostaria de dar um olhadinha.

O vendedor não poupou os íssimos para valorizar as mercadorias. A mulher observou todas e, lembrando o fato do meio-dia, se interessou por uma que lhe pareceu a ideal para cortar ou matar porco.

Zé não foi ao trabalho: estava na casa da amante. Os dois, estirados na sala sobre um colchão duro, bebiam um copo de cachaça atrás do outro. Ficaram a tarde inteira na vagabundagem e, quando chegou a noite, ele foi embora, já que não gostava de jantar na casa dela  achava a comida horrorosa.

Perto de casa, fez silêncio. Queria pegar Lenira distraída e lhe dar uma surra – não tinha esquecido a afronta. Entrou pela porta da cozinha e pegou a faca nova sobre a pia. Vou assustar a mulher com a faca, murmurou. Porém, não a achou em casa. Cadê a desgraçada? Só pode que ela foi ali na fofoqueira.

A vizinha estava, como sempre, debruçada na janela.

-Olha, vou falar a verdade. Eu vi ela saindo com um rapaz bem novo que veio aí vender coisas e acho que ela foi embora com ele. E sabe que ela tá certa? Não existe mulher tão boba que vai agüentar um homem bêbado dentro de casa como tu.

Voltou para dentro de casa chorando. Era uma vergonha perder a mulher (boa cozinheira) para qualquer um. Pegou de novo a faca de sobre a pia e, desesperado, olhando para sua grande barriga, decidiu o que tinha de fazer. Nesse mesmo instante, Lenira atravessava o portão do pátio, trazendo mais carne de porco a fim de fazer a comida preferida dele no jantar.


Comentários

João Paulo disse…
Meu caro, tudo que você escreve tem distinção. Uma crônica sobre a literatura vista em sala de aula, uma análise duma tela do Münch, um belíssimo conto sobre os desencontros da vida conjugal, tudo, tudo que li por aqui, é bom. Abraço. João Paulo dos Santos
Cassionei Petry disse…
Valeu, João. Tuas palavras me incentivam a continuar escrevendo.
Abraço.

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