Mais um devaneio crônico (mais devaneio do que crônica)


Uma imagem do filme de Federico Fellini, 8 e meio, mais precisamente um sonho do protagonista Guido, vivido por Marcello Mastroianni, mostra-o voando sobre a margem de uma praia, como se fosse um balão. No chão, um homem o segura com uma corda presa no tornozelo, impedindo-o de desaparecer nos ares. Um salvador ou alguém que não estava deixando Guido seguir voos mais altos?

Essa sensação, provocada por um dos gênios do cinema, perpassa a minha vida e a tua, leitor, em vários momentos. Há sempre algo que nos impede de ir além, seja a família, a escola, a sociedade, as necessidades econômicas, o porte físico (eu queria ser goleiro, mas a pouca altura e as mãos pequenas privaram a Seleção de ter um metido a escritor como dono da camisa 1), a religião ou nós mesmos. Sempre colocam, ou colocamos, percevejos pelo caminho, que nos fazem recuar. Sempre há alguém segurando a corda que nos prende.

Nietzsche, no aforismo 575 do livro Aurora, fala sobre os “pássaros audazes, que voam ao longe” sobre o mar. Em determinado momento, eles precisam descansar, “sobre um mastro ou um mísero recife”. O filósofo chama, no entanto, de deplorável esse pouso, pois muitos pássaros resolvem ficar, sendo que mais adiante há uma “descomunal rota livre”. Ora, “para onde queremos ir? Queremos passar além do mar?”. Continuaremos seguindo “para lá onde até agora todos os sóis da humanidade declinaram?”. Esse aforismo é como se fosse um mantra que repito mentalmente todos os dias.

O texto que escrevo pode parecer, num primeiro momento, de autoajuda. Porém, as obras desse tipo incitam o leitor a seguir um caminho já traçado: “Os 10 passos para o sucesso”, “Como ganhar na loteria em 7 lições”, “Guia para alcançar seus objetivos”. Se fosse escrever livros de autoajuda, não obteria êxito. Os títulos seriam algo como “Não siga esse caminho, pois esse caminho é meu”, “Como nunca ganhei na loteria”, “Guia para ser um escritor frustrado”.

O que quero dizer com esse texto, na verdade, é que... Bem, já estou devaneando demais e cronicando de menos. Estou subindo de mais, porém estou bem preso pelo tornozelo para não sumir... É melhor parar e assistir a outro filme de Fellini e depois continuar a leitura de Nada a dizer, de Elvira Vigna, daqueles livros que se leem aos poucos, degustando devagar.

(Tradução dos trechos citados de Nietzsche: Rubens Rodrigues Torres Filho)

Comentários

Tom disse…
Exatamente isso que estou passando. Bom texto, psor!

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