Livros velhos revelam um mundo novo


Traçando Livros de hoje, no jornal Gazeta do Sul, caderno Mix. Como de praxe, na sexta-feira o link está disponível, bem como a imagem da página.

O rato de feira do livro é aquele que, mal montadas as barracas, já está revirando os balaios de saldo. É no meio de volumes, na maioria desconhecidos, que ele encontra livros valiosos, não no preço, mas no seu conteúdo, e que pode provocar uma virada em sua vida. Esse ser aparentemente estranho, que foge dos lançamentos para se acotovelar com outros, disputando quem pega primeiro os diamantes nas caixas de madeira, tem como um dos seus antepassados Poggio Bracciolini, caçador de livros que viveu no século XV e que percorria diversos lugares da Europa à procura de “velhos manuscritos, muitos deles mofados, carcomidos de traças e praticamente indecifráveis até para leitores mais treinados.” Uma de suas descobertas é relatada pelo historiador e crítico literário Stephen Greenblatt em A virada – nascimento do mundo moderno (Companhia das Letras, tradução de Caetano W. Galindo), vencedor do Prêmio Pulitzer de 2012.

O jovem Greenblatt também poderia ser considerado um descendente de Poggio. Antes de sair de férias da Universidade Yale, o estudante ia a um sebo da instituição de ensino para ver o que leria no verão: “Os livros ficavam todos misturados em cestos que eu revirava, sem nada em mente, esperando que alguma coisa me chamasse atenção.” De repente, se deparou com uma versão em prosa do poema Da natureza das coisas, de Tito Lucrécio, ao preço de 10 centavos. Num primeiro momento, adquiriu o livro atraído apenas pela capa, com pintura do surrealista Max Ernst. A leitura, porém, foi aos poucos seduzindo-o, desde o hino à Vênus, deusa do amor, passando pelos princípios da filosofia. Lia com prazer a obra, pois não sentia o peso da obrigação. Além disso, ele escreve: “Da natureza conseguiu me tocar muito fundo. Sua força dependeu em alguma medida de circunstâncias pessoais – a arte sempre penetra pelas frestas particulares da vida psíquica de cada um.” A meditação sobre a morte, a tolice que é ser torturado pelo medo dela, segundo Lucrécio, o tocou pessoalmente, tendo em vista lembranças de sua mãe, que sempre falava sobre o tema. 

Percebendo a importância dessa obra, escrita há mais de 2 mil anos, Stephen Greenblatt pesquisou sobre sua origem e encontrou a história do italiano Poggio Bracciolini, que redescobriu, em 1417, em um monastério na Alemanha, o poema de Lucrécio, que havia sido dado como perdido. Essa descoberta tornou-se um momento-chave para o Renascimento, pois suas ideias influenciaram a virada do pensamento medieval para o mundo moderno, abrindo as portas para a arte renascentista e o pensamento de filósofos como Montaigne e Giordano Bruno.  

A descoberta de Poggio fez, segundo Greenblatt, o mundo dar uma “virada para uma nova direção”. A descoberta do jovem Stephen nos cestos do sebo provocou uma virada na sua própria vida. Da mesma forma, a descoberta de um rato dos balaios de uma feira do livro pode ser a virada na sua existência. Se esse objeto de desejo de tantos leitores tem esse poder, só lendo para saber.


Cassionei Niches Petry é professor e mestrando em Letras. Escreve quinzenalmente para o Mix e mantém o blog cassionei.blogspot.com. Na 25ª Feira do Livro de Santa Cruz do Sul, promoveu uma virada na vida dele com o lançamento do primeiro livro, Arranhões e outras feridas, publicado pela editora Multifoco.

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