Do inconveniente de ter escrito



Dia desses, provocado por muitos elogios sobre seu primeiro livro, li um romance de um escritor da nova geração da literatura brasileira. A leitura, no entanto, me decepcionou. Desde o prefácio, que demonstra um escritor medroso, como que se desculpando por ter trabalhado determinado tema, passando por algumas incoerências narrativas e uso de muitos lugares-comuns, a obra seria criticada por mim de forma impiedosa, apesar de alguns momentos muito bem elaborados. Já antevia alguma polêmica, talvez o escritor me bloqueasse nas redes sociais, como já o fizeram outros escritores, apesar de não fazer críticas muito duras a eles, ou talvez meu texto fosse apenas ignorado, como acontece geralmente.

Pensei melhor, porém, até porque minhas resenhas não têm como objetivo fazer críticas negativas. Apesar de muitas vezes me denominar como crítico literário, o que faço é algo como uma crônica literária, impressões de leitura, ensaios curtos. Sigo o conselho do filósofo romeno Emil Cioran: "Não perca tempo criticando os outros, censurando suas obras; faça a sua, dedique a ela todas as suas horas." Gosto mais da expressão ensaio, em que pese ela denominar geralmente textos mais longos. Isso tudo a partir de Montaigne. Acredito, porém, que o que escrevo são tentativas de entender algo, treinos para chegar ao conhecimento, logo, são ensaios, mesmo que, em geral, meus textos não ultrapassem duas laudas. São parte da minha obra literária esse diálogo com outros livros. Não por acaso utilizei textos do meu blog no meu primeiro romance, emprestando-os a um dos protagonistas.

Volto a Cioran, até porque este texto era para ser sobre ele, depois resolvi escrever sobre crítica literária e as coisas que escrevo, porém a leitura e releitura de novos textos de Cioran me perseguem, me inquietam, me jogam no desespero. Ensaiei, tentei escapar dele, no entanto não deu. Ensaio agora uma reflexão sobre algumas coisas que ele escreveu e no que elas me afetaram. Vou tentar, vou ensaiar. Não seguirei, portanto, seu conselho. Ou seguirei, de certa forma, pois, escrevendo sobre ele, escrevo também minha obra.

Filósofo contraditório (por isso me identifico com ele, pois também o sou), que disse em uma entrevista que não era ateu, porém também não acreditava em Deus e nem rezava. Aliás, uma análise sobre o autor feita por um crítico literário aponta como defeito justamente suas contradições. Respeito o crítico, por sinal, um dos melhores que temos (não estou citando nomes, não por ser medroso como o jovem escritor a quem me referi, mas é porque não é necessário), porém está nessa aparente contradição boa parte do que fez Cioran ser o que foi, ou melhor, o que é.

Só o título das obras do filósofo romeno já daria boas análises. Do inconveniente de ter nascido, por exemplo, de 1973, já é praticamente um aforismo da mais alta profundidade filosófica. Por que nascer? Por que isso é inconveniente? É inconveniente nascer ou quem nasceu se torna inconveniente? Cioran era inconveniente? Escrever é inconveniente? A morte é um dos temas mais presentes na obra de Cioran, porém neste livro é o início da vida o objeto das reflexões. Ou melhor, não é, porque morrer é o oposto de nascer. Só pode chegar à morte quem nasceu. "Gostaria de ser livre, inimaginavelmente livre. Livre como um ser abortado."

A morte voluntária, então, não poderia ficar de fora, um dos temas de seu primeiro livro, Nos cumes do desespero, outro título que valeria um ensaio. Se o meu leitor ainda não sabe, o suicídio é minha obsessão (entre tantas outras). Não cometê-lo, mas entendê-lo, principalmente na literatura, tanto o suicídio das personagens como o dos escritores. Já escrevi um ensaio sobre o tema, publicado na revista Signo, dos cursos de graduação e pós-graduação em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul.

Cioran escreveu algumas pérolas, com o perdão do clichê, sobre o assunto. "Um livro é um suicídio adiado." Usei esta citação na elaboração do meu primeiro romance. Adiei meu suicídio ao escrevê-lo e espero continuar adiando-o, escrevendo outros livros. Escreveu ainda: "Só vivo porque posso morrer quando quiser: sem a IDEIA do suicídio já teria me matado há muito tempo." "És mestre de tua vida, podes matar-te quando quiseres." "Quem jamais concebeu sua própria anulação, quem não pressentiu o recurso à corda, à bala, ao veneno ou ao mar, é um condenado abjeto ou um verme rastejante sobre a carcaça cósmica." "Como é difícil aprovar as razões que invocam as pessoas. Cada vez que nos afastamos de qualquer uma delas, a pergunta que vem ao espírito invariavelmente é: como é que não se mata? Pois nada é mais natural do que imaginar o suicídio dos outros." Tem como não gostar desse cara?

Cioran também me ajuda ou atrapalha ao pensar sobre a escrita, outra obsessão. Volto então a um dos possíveis objetivos deste ensaio que tento escrever, que era refletir sobre o que escrevo. "Uma obra só existe quando ela é preparada na sombra com a atenção, com o cuidado do assassino que medita seu golpe. Em ambos os casos, o que importa é a vontade de surpreender." Ah, como eu gostaria que lessem até o final o meu romance Os óculos de Paula. Na sua escrita, segui o aforismo sem ainda tê-lo lido. "Um livro deve cutucar as feridas, provocá-las inclusive. Um livro deve ser um perigo." Meu primeiro livro tem o título Arranhões e outras feridas. Precisa dizer mais? "Só deveríamos escrever livros para dizer coisas que não nos atreveríamos a confiar a ninguém." Há muitas coisas que penso que estão na minha ficção, mas nem tudo que está lá eu realmente penso. "—Seu livro é um livro fracassado. —É verdade, mas você se esquece de que eu o quis assim e que apenas desse modo poderia ficar perfeito." Quando comecei a elaboração do meu romance, escrevi reflexões teóricas sobre o processo de criação que conformaram, junto com o livro, minha dissertação de mestrado. O nome inicial dessa parte nem tão teórica assim foi "Notas de um fracasso anunciado", lembrando García Márquez, claro. Fui dissuadido a usar este título pelo meu orientador, que é um otimista. O título escolhido "Notas confessionais de um angustiado". Cioran não é citado nas notas, mas aparece no romance.

"Só somos nós mesmos pela soma de nossos fracassos," escreveu Cioran em Breviário de decomposição. De fracasso em fracasso vou escrevendo, vou ensaiando, vou filosofando ou ficcionalizando. Sinto que fracassei neste ensaio, mas ele está aí assim mesmo. Continuo sendo inconveniente como o foi Cioran. Peço desculpas por ter nascido. 

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