Preferiria não escrever esta crônica


Há aqueles “memes” nas redes sociais que dizem “hoje estou me sentindo meio Capitu, com olhos de ressaca” ou “hoje estou me sentindo meio Brás Cubas, mais morto do que vivo”. Não vi até agora nenhum “meme” com a frase “hoje estou me sentindo meio Bartleby, prefiro não fazer”, caso contrário eu compartilharia. Essa frase, nas suas variantes em diferentes traduções, faz parte de uma novela de Herman Melville, Bartleby, o escriturário (ou o escrevente, ou o escrivão, também dependendo da tradução). No enredo, um jovem é admitido em um escritório de advocacia, com a função de copiar e revisar as cópias de documentos (século XIX, não havia xerox, é óbvio). Lá pelas tantas, quando o chefe lhe ordena algo, ele diz que preferiria não fazer, e não faz. Sua inércia causa indignação dos colegas e também do chefe que, no entanto, também sente pena do rapaz, visto que não consegue demiti-lo. Mais adiante se recusa a ir embora do escritório, chegando a morar no lugar. Por causa disso, muitas confusões vão acontecendo.
A frase de Bartleby (que Gilles Deleuze chama em um ensaio de “fórmula”) denota em princípio certa passividade do personagem. Num mundo em que agir é a regra, não fazer nada é ser um perdedor. Entretanto, escolher não fazer nada não deixa de ser uma forma de ação, até porque resulta na reação de outras pessoas. Se escolhermos não opinar sobre um assunto, outros reagem, muitas vezes de forma raivosa, afinal desejam que se diga algo, caso contrário demonstra que a pessoa concorda com o que está sendo contestado. Preferir não comentar sobre as decisões dos governantes e dos políticos, por exemplo.
Quanto à literatura, principalmente quanto a escrever literatura, muitas vezes preferir não escrever também é uma forma de fazê-lo. Posso preferir apenas ler, pensar, idealizar e deixar a escrita de lado. Isso também é escrever. Giorgio Agamben escreve em um ensaio que preferir não escrever é na verdade a potência de escrever. “O escriba que não escreve (do qual Bartleby é a última, extremada figura) é a potência perfeita, que só um nada separa agora do ato de criação.” Podemos escrever, mas não o fazemos. Preferimos o nada: “Como escriba que cessou de escrever, ele é a figura extrema do nada de onde procede toda a criação e, ao mesmo tempo, a mais implacável reivindicação deste nada como pura, absoluta potência.” Ou seja, é do nada que surge a obra. Sem o nada não há criação. Mas há que se ter a potência, juntamente com a vontade e a necessidade de escrever.
Enrique Vila-Matas escreveu um romance dialogando com a novela de Melville. Chama-se Bartleby e Companhia, em que o narrador faz um diário sobre os escritores que, por um motivo ou outro, preferiram não mais escrever. Preferiram ou, por circunstâncias diversas, não puderam mais escrever. Ou o escritor se recusa ou a obra recusa o escritor. A última alternativa é o que mais acontece. A obra prefere não existir. O escritor prefere não insistir.         
Há também o componente da rebeldia. Bartleby decide não cumprir ordens. De certa forma, quando preferimos não fazer algo, estamos reagindo, não estamos sendo passivos, estamos desobedecendo, demonstrando uma insatisfação, também estamos fazendo aquilo que não querem que façamos, estamos seguindo um caminho diferente do que querem que sigamos. Não fazer nada é também fazer algo. Preferir não opinar é melhor do que opinar sem ter a potência para tal. É o que mais se vê por aí.   

Esta é uma crônica, portanto, que preferiria não estar escrevendo. Sinto-me mais feliz com a possibilidade de escrever algo e não o fazer. A felicidade, porém, não é meu norte, caso contrário não escreveria, não opinaria, não daria a cara para bater vez em quando. Preferiria não ser tachado, não ser julgado, não ser bloqueado nas redes sociais, não ser criticado, não ser ridicularizado, não ser mal interpretado, não perder amigos, não desagradar, preferiria não ser eu. No entanto, escrevo. Prefiro não me abster de escrever. E de publicar, por conseguinte. E de incomodar.

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