Louco, ma non troppo


Recebi pelo correio um manuscrito, com letra trêmula, porém legível, enviada pelo irmão do autor do texto. Este, segundo escreve o irmão, se suicidou há uma semana, não sem antes rasgar quase todos os seus cadernos. Deixou apenas essa folha intacta, porém não sabe o motivo. Decidiu me enviar, pois havia lido no jornal da cidade um artigo meu sobre a morte voluntária. Disse que poderia fazer o que bem entendesse com o manuscrito. Reproduzo aqui em homenagem ao suicida e ao escritor Jacques Fux, cuja obra é o mote do texto.
  
Por que me prendo aqui? Prendo-me porque os outros não me querem solto, mas têm receio de me prender. Simples. Não, não é tão simples. Se me refugio na leitura e na escrita é porque no mundo dos livros eu encontro o meu lugar. Que são muitos, diga-se. É porque, da mesma forma, me identifico com as personagens. Que são muitas. Eu sou muitos. Aqui eu não incomodo os outros. Aliás, incomodo meus pais apenas para que comprem livros e não me deixem nunca sem lápis, borracha e caderno. Para que eu crie novos mundos. Para que escreva sobre os mundos e as personagens que leio, mesmo sabendo que ninguém vai ler. Antes de morrer, queimo tudo. Ou rasgo tudo, pois não me darão um fósforo.
Meu irmão me trouxe um romance sobre mim e meus outros. Meu pai não me daria este livro, tampouco minha mãe. Ele me disse que era um romance, aliás, está na capa que é um romance, “um romance sobre a loucura”, mas não, não é um romance. São ensaios ficcionalizados, perfis literários, contos sobre a loucura, vá lá. Tudo amarrado por um narrador que escreve sobre judeus famosos ou não tão famosos que têm como traço em comum a loucura em seus diferentes níveis ou conceitos. Não é uma loucura qualquer. É a loucura judaica, o Meshugá que dá título à obra. É a loucura do autor, Jacques Fux, também judeu, assim como das personagens, entre elas a filósofa Sarah Kofman, passando pelo diretor Woody Allen, até chegar ao próprio narrador.
Alguns são suicidas, como o filósofo Otto Weininger, que se matou jovem, depois de tentar lidar com seu homossexualismo e as pressões da religião judaica. Outros vivem uma vida suicida, como o ator pornô Ron Jeremy. Há os judeus que se tornam antissemitas, como Daniel Burros (um nome que condiciona destino, diria outro judeu, Moacyr Scliar), que se tornou nazista e membro da Ku Klux Klan e que se suicidou como Weininger. Temos os gênios do raciocínio, o que prova que a loucura não é ausência da razão: o matemático Grisha Perelman, “o Bartleby da matemática”, segundo o narrador, pois preferiu não ir receber um prêmio milionário que ganhara; e um dos maiores ou o maior jogador de xadrez de todos os tempos, Bobby Fischer, que se tornou um paranoico e declarou apoio aos terroristas que derrubaram as Torres Gêmeas em Nova Iorque. A galeria de loucos judeus retratados por Fux tem ainda o falso messias Sabbatai Zevi.
É na escrita e na criação artística que muitos desses loucos encontram uma forma de lidar com suas agruras. Sarah Kofman, por exemplo:
“Ela tem a saúde frágil. Tem dores constantes em todos os seus membros. Tem dificuldade para andar. Para respirar. Para viver. Não consegue comer. Não se tranquiliza jamais. Só se sente bem ao escrever sobre filosofia. As palavras nunca vão salvá-la.”
Seu destino é também o suicídio: 
“A morte lhe parece uma ótima idéia. Talvez sua última e única verdade.
E seria a morte uma possibilidade artística? A arte salva? A arte consterna? Machuca?”

Woody Allen, o “judeu neurótico, risível e atormentado”, retratado a partir de um fato polêmico de sua vida, que foi o envolvimento com a filha adotiva de sua esposa, Mia Farrow, “se refugia na sua arte. Na literatura, música e cinema (...). Através da arte ele acredita que estará sempre isento de culpa.”
Por fim o narrador, aqui retratado por ele mesmo na terceira pessoa, encontra na escrita um lenitivo para o sofrimento por ter sido abandonado por uma mulher:
“Sabe que tem de se dedicar à escrita, se tem gana de sobreviver. Então começa a escrever. Escreve loucamente, por horas e horas intermináveis. Ele literalmente entra em seu livro. Vive inteiramente o sofrimento de seus personagens inventados. Sente a dor profunda de um parto, e da angústia por essa grande espera. Ele termina uma bela obra de arte”.
 Conhecendo essas outras vidas, que passam a ser minhas, vou levando a minha vida aqui em meio aos milhares de livros que venho acumulando. Se sou chamado pelos outros de “o louco dos livros”, não me importo. Uma das características do louco é pensar diferente dos demais. Prefiro ser assim.

Aliás, como sei que ninguém vai ler isso aqui, posso bradar: que se danem os outros! Salvo os outros que vivem dentro de mim. E salvo aqueles que me trazem a comida do corpo e do intelecto, é claro, pois não sou tão louco como pensam. 

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