Resenha no Amálgama sobre Mariana Enriquez


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Contos que queimam


Adela não tem um braço e não se importa muito com isso, não faz questão de esconder. O escárnio das outras crianças tampouco a abala. Seus pais dizem que ela teria nascido assim, porém ela não acredita. E conta versões diferentes para o caso. Uma delas, de que um cachorro chamado Inferno teria arrancado seu braço quando era ainda um bebê, e que o animal foi morto a tiros ainda a segurando na boca. Não aceita, portanto, uma realidade tão sem sal e resolve recriá-la contando histórias.

A protagonista do assustador “A casa de Adela”, de certa forma, representa sua autora, Mariana Enriquez. Os 12 contos de As coisas que perdemos no fogo (Editora Intrínseca, 192 páginas, tradução de José Geraldo Couto) são duros, violentos, reais, no entanto com pitadas de fantástico e terror. É o primeiro livro lançado no Brasil pela escritora argentina, uma autora que segue com maestria o caminho de escritores como Julio Cortázar, inegável influência.

A ordem dos contos vai acrescentando cada vez mais tensão na história. O que parece algo bem realista no primeiro conto, “O menino sujo”, em que a narradora, morando em um bairro decadente de Buenos Aires, tem como vizinhos uma mulher grávida e seu filho, que dormem em um colchão na rua até eles desaparecerem, vai ganhando tons mais fantásticos e de terror em seguida. Em “A hospedaria”, duas jovens resolvem se vingar da demissão do pai de uma delas e invadem, durante a madrugada, um “hostel” onde ele trabalhava, com a intenção de colocar animais mortos no interior dos colchões, porém acabam tendo uma visão que as aterroriza. Vale destacar que o prédio havia servido como sede da polícia durante a ditadura argentina.

“Os anos intoxicados” retrata uma geração de jovens entre os finais dos anos 80 e início dos 90 que vive uma crise econômica durante os governos de Raúl Alfonsín (época de terror segundo disse a escritora em uma entrevista) e Carlos Menen e ainda não sabe lidar com a liberdade pós ditadura. Em “Fim de curso”, uma aluna arranca uma de suas unhas em plena aula. É só o começo de uma série de automutilações que impressionam a narradora. Quem vivencia esse tipo de situação em uma escola, logicamente sem a hipérbole do conto, sabe que é uma situação difícil de lidar. Na narrativa, porém, há o elemento fantasmagórico.

“O quintal do vizinho” traz no enredo um casal que aluga uma casa cujo pátio ao lado guarda surpresas nada agradáveis para a mulher, que sofre de depressão. “Sob a água negra” lembra Lovecraft, quando seres aparentemente estranhos saem das águas poluídas de um rio que corta uma vila em Buenos Aires.

O último conto, que dá título ao livro, revela uma espécie de seita de mulheres que ateiam fogo em si mesmas como protesto contra os homens: “Sempre nos queimamos, agora nos queimamos nós. Mas não vamos morrer, vamos mostrar nossas cicatrizes.” Vários rostos deformados pelas queimaduras perambulam pela cidade, mas o terror maior está guardado para o final.

Outra influência declarada de Mariana Henriquez, além do já citado Cortázar, é o mestre do terror Stephen King. Ao contrário dos livros dele, no entanto, há uma regularidade no que tange à qualidade de todos os contos de As coisas que perdemos no fogo. King reúne em suas coletâneas narrativas muito boas e outras descartáveis. A escritora argentina, porém, preza pela qualidade, o cuidado com a linguagem, a concisão e, principalmente, o uso do final aberto. O leitor sai com a sensação de “e agora?”, com o enredo ecoando na mente. É um dos trunfos da autora.

Aproveitando a menção a Stephen King, vale lembrar a distinção que ele faz, no livro Dança macabra, entre terror e horror, tanto nos filmes, quanto na literatura. Basicamente, o terror assusta sem mostrar “o monstro”, enquanto o horror consiste em explicitá-lo. O primeiro, portanto, é mais psicológico, e se encaixa no que Mariana Enriquez cria. Em muitos momentos, encontramos explicações lógicas para o comportamento das personagens, muitas vezes do interior delas: distúrbios mentais ou choques emocionais fortes.

Resta concluir afirmando a admiração e a inveja deste crítico em relação à literatura argentina, que tem um grau de qualidade superior a nossa, inclusive na chamada literatura de gênero. Aqui no Brasil a preocupação de boa parte dos cultores do terror é entreter o leitor e vender bem, deixando o apuro da linguagem de lado, inclusive criticando quem cultua a qualidade. Mas isso é assunto para outro texto. 

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