“Decifra-me ou te devoro”


Em alguns momentos da minha vida eu vivia com a Bíblia debaixo do braço. Não ficava, porém, sempre com ela debaixo do braço. Eu também a lia. Lia, sublinhava, fazia anotações. E a questionava. Talvez a sua leitura a tenha me tornado um ateu, ou, como costumo dizer, voltado a ser ateu, afinal, nascemos sem crença alguma. É um livro repleto de contradições, mas não é o meu objetivo debatê-las agora.

Um dos métodos que seguia para ler a Bíblia era abrir aleatoriamente uma página, apontar com o dedo um trecho, de olhos fechados, e depois desfrutar dos versículos ao acaso. Achava que era alguma mensagem divina que recebia. Hoje utilizo a mesma estratégia com os livros do filósofo Friedrich Nietzsche.

Abro aleatoriamente uma página do livro Humano, demasiado humano II, em uma edição recente, de bolso, da Companhia das Letras, tradução de Paulo César de Souza. No topo da página 117, um aforismo, de número 348, me chama a atenção:

Da terra dos canibais. – Na solidão o solitário devora a si mesmo, na multidão o devoram muitos. Agora escolha.”

Há que se levar em conta, primeiramente, a palavra “canibal”: um ser vivo que come um outro ser da mesma espécie. Quando se refere à espécie humana, a palavra adequada é antropófago. Em muitas culturas, é um ritual com intuito de obter o poder, a virilidade, a inteligência, a coragem do inimigo. Os covardes não são devorados.

No aforismo de Nietzsche, no entanto, a expressão é figurativa e nos põe num dilema quanto à solidão do indivíduo: se está só, ele se devora, acaba consigo mesmo pelo sofrimento. Se está em meio a muitas pessoas, elas que acabam com ele, pois a convivência em sociedade nos expõe a muitos perigos. É uma leitura possível, a mais óbvia, talvez.

O filósofo me sugere que faça uma escolha. Penso que optar pela solidão, reclusão, introspecção, é o caminho mais instigante. Mas veja, não digo viver só, visto que ter uma família e amigos é fundamental para o ser humano. Ter alguns momentos de solidão, porém, é necessário. Nesse sentido, ao se devorar, lembro da Esfinge que desafiava Édipo na mitologia grega: decifra-me ou te devoro. É uma metáfora para a busca do conhecimento. Na solidão, busco a leitura de um bom livro, bebo as letras que se derramam do papel, devoro suas páginas e com isso me alimento intelectualmente. Mais tarde regurgito em formas de reflexões escritas. Às vezes, as compartilho com outras pessoas nas páginas dos jornais ou da internet.

Nesse momento vem a multidão. Quando expõe uma opinião elaborada e reelaborada na solidão de sua biblioteca, o escritor corre o risco de ser devorado por uma massa com fome não de conhecimento, mas de destruir conhecimento. São aqueles não podem encontrar um indivíduo que possa eventualmente saber mais do que eles, ou que possa pelo menos sustentar, através de leituras, o que pensa: partem logo para os xingamentos, para a ofensa, para a condenação, para a rotulação. O interessante é que tentam destruir o indivíduo com pouquíssimas palavras, muitas vezes pré-fabricadas. Imaginam que com isso tornam-se mais inteligentes.

O escritor (cronista, articulista, colunista) acaba escolhendo, no dilema proposto pelo filósofo, ser devorado. Ele é a Esfinge que propõe enigmas. O bom leitor é o Édipo, que os decifra. Quando encontrar um Édipo, a Esfinge pode-se atirar no abismo.


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